O que blockchain tem a ver com a polinização das abelhas? Qual a intersecção entre design de materiais mutantes e comédia stand-up? O que diabos a inteligência artificial e a importância da cultural do hip-hop têm em comum?
Eu respondo: pessoas.
Neste ano, eu estive no South by Southwest, um dos eventos de tecnologia e cultura mais importantes do mundo. Em grande parte, a cobertura do SXSW foca na tecnologia. E tudo bem, porque esse lado do evento é impressionante mesmo. Mas isso acaba dando uma visão parcial e fragmentada do que acontece por lá. O mais interessante de estar no local, vendo tudo ao vivo, é a proximidade com as pessoas que fazem esses avanços acontecer.
Esse contato tira muito da frieza e do distanciamento com que normalmente entendemos a tecnologia e traz um peso maior para a cultura. Se eu for sintetizar o festival em uma frase, é esta: a tecnologia avança muito mais rápido que as pessoas. Por isso, nosso maior desafio é humano, e não tecnológico.
Dito isso, vão aqui dez reflexões inspiradas na minha experiência no SXSW 2019:
1. Tudo pode ser melhorado, sempre
Uma prova do quanto a cultura da tecnologia virou cultura popular é o mantra “sempre beta”. Surgida de uma abordagem de desenvolvimento de software, essa filosofia hoje encampa desde startups até ONGs, passando pela comédia stand-up. O que pode sofrer disrupção? Do que as pessoas mais precisam? Fazendo as perguntas certas, olhando com atenção e plugando a tecnologia correta, absolutamente tudo pode ser melhor do que é.
Exemplo: aprendendo a fazer trabalho social.
O Volo é uma plataforma que ajuda as pessoas a aprenderem novas habilidades necessárias ao mercado de trabalho – e, além disso, com impacto social. Quer aprender a programar? Então ganhe esse conhecimento fazendo um site para uma ONG que cuida de crianças. Precisa desenvolver sua capacidade de liderança? Lidere um time na construção de casas populares para refugiados. De forma simples, o Volo consegue melhorar a educação e o trabalho social.
2. Menos controle, mais inovação
Mais uma vez, vemos a cultura de produção de softwares contaminando o mainstream. Da gestão de projetos ágeis, vem a abordagem de entregar valor para as pessoas o mais rápido possível. Não adianta segurar seu projeto, sua ideia, até ela estar perfeita como você imaginou. Quando for lançada, ela já vai estar defasada.
O exemplo mais radical disso é a China, que está reduzindo a burocracia para se abrir e conseguir financiamento para startups em apenas três semanas. Lá, o mercado muda tão rápido que, daqui a seis meses, uma ideia de agora pode já estar caduca.
Exemplo: Diretores de cinema vs. vídeo volumétrico
O vídeo volumétrico é uma tecnologia de filmagem que capta voxels, ou pixels em três dimensões, com volume e posição espacial. A Intel desenvolveu um estúdio e uma estrutura de captação de filmes volumétricos, envolvendo uma equipe dedicada de engenheiros e criativos produzindo conteúdo com marcas, equipes esportivas e cineastas.
O problema é que os diretores de cinema, por melhor que sejam, têm tido uma dificuldade enorme em filmar fora da visão unilateral tradicional. Por isso, a Intel diz que tem tido resultados muito melhores com diretores de teatro, devido à sua noção de espaço e por sua capacidade de improvisar diante dos erros e dos problemas.
3. Errar, errar e errar de novo faz parte
Errar não é um problema. Sério, não é mesmo. Aliás, quanto antes você descobrir uma falha, melhor. Assim não perde tempo descobrindo essa falha mais adiante, quando consertá-la vai custar muito mais caro.
Pense na velocidade de crescimento de startups. É uma ilusão achar que tudo será perfeito e indefectível. A correção de rota é parte da evolução dessas empresas. Existe até um termo para as maiores correções, que é “pivotar”. Mas essa é uma grande mudança de cultura nas corporações, que até hoje só vêm premiando o acerto.
Exemplo: “Pointless brings progress”
A agência japonesa Dentsu apresentou, no Trade Show do festival, uma iniciativa chamada Pointless brings progress (algo como “Sem sentido traz o progresso”). Ela defende que a inovação nasce de coisas que, à primeira vista, podem parecer sem sentido – só o tempo dirá se elas são revolucionárias ou inúteis.
A Dentsu apresentou ideias de inovação pela inovação, do tipo que muitas vezes as agências usam apenas para inscrever em prêmios, mas com uma abordagem mais honesta. A mensagem é: somos capazes de pensar essas coisas, e ainda não sabemos no que elas vão dar. O erro como método aqui é ainda mais impactante vindo de uma cultura associada ao alto desempenho, como a do Japão.
4. Mais empatia, por favor
Se errar faz parte e todo mundo erra, todo mundo tem de ser mais capaz de se colocar no lugar do outro. Até porque normalmente a sua ideia não é feita só para você. Quanto mais você entender o outro, menores são as chances de errar – e maiores serão as chances de ver sua ideia tendo um impacto real nas demais pessoas.
Exemplo: Empatia no exército
Na palestra A Crash Course in Empathy and Leadership (“Curso rápido de empatia e liderança”, em tradução livre), Michael Ventura, autor de um livro sobre o mesmo tema e consultor para grandes empresas como a Adobe, contou como o exército americano o procurou para ensinar militares de altas patentes a serem mais empáticos. Não apenas porque a razão de existência do exército é servir o povo, mas porque, em combate, os líderes precisam ser capazes de unir as tropas e ter uma comunicação mais eficiente com elas. Até uma organização tida como rígida e fria é capaz de entender que os tempos mudaram.
5. Precisamos de mais pessoas pensando diferente
I’ve heard enough from white old men. (“Já ouvi o suficiente de velhos homens brancos”, em tradução livre). Essa inscrição que vi pelas ruas, estampada em camisetas, sintetiza tudo que foi tratado em detalhe em diversas palestras mais longas. Precisamos trazer todas as diferentes perspectivas para a mesa, e não apenas porque é o certo, mas também porque isso diminui a nossa margem de erro. Criatividade não é sobre pensar diferente? Nada melhor que pessoas diferentes pensando juntas.
Exemplo: O feminismo liberta os homens
Alexander de Croo é Ministro das Finanças e Cooperação para o Desenvolvimento da Bélgica e autor do livro The Age of Women: Why Feminism also Liberates Men (“A era das mulheres: por que o feminismo também liberta os homens”, em tradução livre). Ele, assim como outras vozes que tratam do tema, defende que a igualdade de gênero traz desenvolvimento tanto econômico quanto social.
Econômico, pois pesquisas mostram que, em países com renda mais igualitária entre homens e mulheres, as famílias apresentam renda maior. Social, pois essas famílias tendem a investir mais em educação, ao mesmo tempo que isso liberta os homens de diversos estereótipos e expectativas que são escravizantes e tóxicas.
6. Grandes dados, grandes ideias
A criatividade é uma atividade que envolve risco. Quando você cria o que não existe, é impossível ter certeza de que essa ideia vai dar certo. Por isso, temos de aceitar o erro como parte do processo. Porém isso não quer dizer que não vamos tentar ao máximo diminuir a margem de erro e tomar decisões conscientes. E é por isso que se fala tanto sobre dados. Nunca tivemos uma quantidade tão vasta de informação disponível para ajudar a guiar nosso instinto criativo ao longo do processo de criação.
Exemplo: Cirque du Soleil + Lab of Misfits
Como aprimorar o Cirque du Soleil, essa potência criativa que ajudou a reinventar o circo como arte? Como melhorar o melhor que existe? Aquilo que aparentemente já é perfeito?
Surpresa, surpresa! Usando os dados.
O Cirque fez um estudo de neurociência em parceria com o Lab of Misfits para entender o que de fato as pessoas sentem quando assistem a um espetáculo, que reações elas têm no corpo e na mente a cada ato, a cada piada, dança, música e pirueta. Essas informações vão ajudar o time criativo do circo a entender o que funciona melhor, que dinâmica de espetáculo mantém as pessoas imersas, se deve ter mais ou menos palhaços, se o malabarismo deve vir antes ou depois da dança e assim por diante. Isso, tenho certeza, vai provocar muitas outras ideias que eles querem testar no futuro.
7. Ninguém é criativo sozinho
Nada acelera mais a inovação e gera mais criatividade do que a troca. O SXSW é inteirinho baseado na colaboração e em como fomentar uma comunidade criativa. Isso valia para o renascimento, valia para o movimento punk e ainda vale para nós. Um movimento é mais forte que um gênio solitário. Sempre foi assim, e sempre será.
Exemplo: Criatividade na CIA
Quando você pensa na Agência Central de Inteligência dos EUA, pensa em quê? Aposto que criatividade não é a primeira coisa que vem à mente, certo? Mas veja que interessante: a CIA tem um time dedicado a ensinar criatividade para ajudar seus agentes a pensar fora da caixa e, assim, ganhar mais eficácia para resolver casos intrincados.
E uma das técnicas que eles ensinam é sair da zona de conforto e tentar ver o caso sob uma nova perspectiva. Para isso, eles chamam pessoas de fora, de áreas tão diversas quanto estilistas, artistas ou mágicos. Pessoas que jamais resolveriam um enigma de inteligência, mas que podem ajudar os agentes a ver esses problemas com um olhar fresco. E lembrem que estamos falando de casos que envolvem informações ultrassecretas. Se mesmo eles não resolvem tudo sozinhos, como o resto de nós conseguiria?
8. Ego só atrapalha
Nesse SXSW, comprei um café junto de Michael Pollan, vi pôsteres de bandas ao lado de David Frickle, assisti a uma palestra próximo de Neil Gaiman e ouvi pesquisadores brilhantes contarem suas descobertas sem a menor preocupação de que elas fossem roubadas.
Diferentemente de outros festivais, o SXSW não tem a ver com inflar o ego dos criativos. Pelo contrário, vejo um esforço consciente de tirar os gênios dos pedestais e mostrar que eles são pessoas comuns como todos nós. Ou seja, todos podemos ser gênios também. E essa é a mensagem mais poderosa de todas: a abertura gera conexões; o ego, apenas competição.
Exemplo: Todo mundo é artista
Poucas coisas envolvem tanto ego quanto a arte. Em geral, os artistas querem ter controle total para materializar sua visão e mostrar sua técnica. Mas o livro/experimento Do it, de Hans Ulrich Obrist, curador das Galerias Serpentine de Londres, quebra esse tabu completamente. A obra é uma espécie de manual de instruções, no qual diversos artistas ensinam passo a passo como executar trabalhos que eles mesmos nunca executaram. Ou seja, a arte só passa a existir através das mãos do público. Não existe uma execução ideal feita pela mão do artista. Apenas diferentes interpretações das pessoas, com suas capacidades e limitações.
9. Sistemas criativos tornam você mais criativo
Se pessoas são mais criativas em conjunto do que sozinhas, o mesmo vale para ideias. Elas são melhores quando não estão isoladas. Sistemas criativos são métodos, padrões e conjuntos de regras que ajudam a resolver problemas de forma mais eficiente e a gerar mais ideias. Por exemplo, se um bolo de chocolate fosse uma ideia, o sistema criativo seria uma padaria, capaz de criar muitos outros bolos de diversos sabores, além do de chocolate.
Exemplo: Design de materiais mutantes
Foi isso que fez Lining Yao, da Carnegie Mellon University. Ela estabeleceu um sistema criativo para gerar diversos materiais mutantes. A premissa é a de que o material deve ter a propriedade de se transformar quando estimulado por calor, água ou outros fatores. O que ela e seu time fazem é descobrir materiais que podem ser usados dessa forma e criar novos usos para eles.
Uma das aplicações é um tipo de plástico que reage ao calor, se dobrando de forma programada. Imagine o que uma grande empresa de móveis pode economizar em logística se alguns de seus produtos forem transportados como chapas retas, ocupando menos espaço em caminhões. Já o consumidor, em vez de montagens complicadas, só precisa usar um secador de cabelo para que a cadeira se monte sozinha.
10. O maior desafio é humano
As pessoas têm medo de mudança. Isso foi gravado no nosso DNA por milênios. A mudança significava risco à sobrevivência. Precisamos lutar contra nosso instinto para sermos mais abertos, diversos e colaborativos. Precisamos ir contra a cultura do vencedor para aceitar o erro como parte do processo criativo. Tecnologias vêm e vão, mas as pessoas ficam. São elas que criam e que usam as tecnologias.
Exemplo: Elvis contra o aquecimento global
Na palestra da NASA sobre o projeto Oceans Melting Greenland (“Oceanos derretendo a Groenlândia”, em tradução livre), Josh Willis disse que o debate sobre aquecimento global hoje é uma questão emocional, e não racional. Ele comprovou seu ponto racional explicando como funcionam as modernas tecnologias usadas para medição do aumento do nível dos oceanos e do degelo das calotas polares, e trouxe dados que comprovam o aquecimento global e o consenso na comunidade científica de forma categórica. Já a parte emocional, ele tentou resolver de uma forma pouco ortodoxa para um cientista: imitando Elvis Presley. Uma prova de que até cientistas precisam encontrar novas formas de se comunicar com seu público.