Kevin Alloca, Head of Culture & Trends do YouTube, explica como a plataforma desafia os conceitos “tradicionais” da mídia e se transformou em um fenômeno único graças a seus protagonistas: as pessoas.
Eu acompanho as tendências no YouTube há mais de 9 anos, e hoje lidero um time global dedicado a projetos que ajudam as pessoas a encontrar e entender as coisas que fazem sucesso em meio aos bilhões de horas que o público gasta todos os dias assistindo a conteúdo na nossa plataforma.
Até cheguei a escrever um livro sobre isso, partindo de várias tendências interessantes que estudei ao longo desse tempo todo para analisar como e por que a cultura pop se tornou algo tão diferente do que era anos atrás.
Uma coisa que aprendi é que muitos dos vídeos e canais que fazem sucesso do ponto de vista criativo não se encaixam nas nossas expectativas “normais”. O YouTube nos obriga a reconsiderar crenças sobre como o entretenimento geralmente funciona.
Aqui, vou explorar a evolução no conceito de “qualidade” do ponto de vista dos públicos – à medida que o entretenimento de que essas pessoas gostam se adaptou e passou a ser construído para atender as necessidades das pessoas.
A criatividade nos lugares mais inesperados
Antes de mais nada, vamos olhar para como as pessoas tiram valor do conteúdo, e como elas o utilizam de maneiras surpreendentes nas suas vidas.
Um exemplo: muitas pessoas não pensariam no YouTube na hora de procurar conselhos financeiros. No entanto, esse é um tópico que tem ficado cada vez mais popular, graças a criadores como Murilo Duarte, do canal Favelado Investidor. Ele, que vem de uma comunidade menos favorecida, fala de investimentos de uma maneira acessível a todos.
Na verdade, o maior canal de educação financeira do mundo é do Brasil. Sua estrela é a criadora Nathalia Arcury, que tem quase 4 milhões de assinantes. O que acontece nesses casos é que as pessoas procuram conteúdo que possam usar com fins específicos – e os criadores que entregam isso são os que fazem mais sucesso.
Já canais como o da Jout Jout inspiraram uma tendência crescente em todo o mundo: conteúdo focado na saúde mental. Nos últimos dois anos, vimos uma alta bem considerável nos vídeos que tratam, entre outros assuntos, de depressão e ansiedade.
Outro caso é Gabi Oliveira, que começou seu canal há alguns anos, quando era estudante de Relações Públicas, e hoje cobre uma gama ampla de assuntos, como beleza e questões raciais. Hoje ela já faz parte das conversas das pessoas no dia a dia.
No YouTube, encontre a sua turma
Uma coisa que você deve aprender: os criadores de conteúdo não precisam ter um apelo a todo mundo logo de cara. Aposto que você, que está pensando em ter um canal de sucesso no YouTube, nem imaginou criar vídeos sobre cuidados pessoais, por exemplo. Mas muitos criadores que falam de coisas bem específicas pelas quais são apaixonados acabam encontrando um público que compartilha dessa paixão. Assim, tópicos aparentemente estranhos podem fazer todo o sentido do mundo.
Um grande exemplo disso são os vídeos de ASMR (sigla para Autonomous-Sensory Meridian Response, ou resposta sensorial autônoma do meridiano), chamados por algumas pessoas de “vídeos de sussurro”. Eles são criados para gerar uma sensação relaxante em quem assiste. Esse conteúdo pode ser bem esquisito à primeira vista, mas sua audiência explodiu no Brasil recentemente. O ASMR inclusive virou tema de alguns anúncios bem populares, tanto no Brasil quanto em outros países.
Nenhuma rede de TV teria encomendado um show com pessoas sussurrando e fazendo barulhos em objetos para relaxar os espectadores. A mesma coisa vale para os vídeos de pessoas estudando. No início do ano, minha equipe descobriu que milhares de vídeos do tipo “estude comigo”, em que os criadores servem como colegas de estudo, estavam sendo publicados. Quem assiste assina o canal e clica nos vídeos para se motivar a focar nos livros. E isso é algo comprovado pelos dados.
Veja esta tabela, que mostra os picos de audiência dos vídeos “estude comigo” nas épocas de provas, assim como suas quedas fora do período acadêmico:
Esses criadores criam uma atmosfera positiva para quem estuda, e um senso de responsabilidade que se traduz em valor real para o espectador. Eles transformam a experiência de estudar em algo um pouco menos isolado.
Menos populares, mas ainda mais interessantes, são os tutoriais de limpeza, em que os criadores e criadoras dão dicas sobre suas rotinas ao limpar suas casas. Isso é incrível, ainda mais se você pensar nesse tipo de conteúdo com a cabeça da mídia tradicional. Afinal, o que pode ser menos interessante do que ver alguém lavar louça?
O ponto é que as pessoas usam a mídia de maneiras que muitas vezes não imaginamos ou planejamos, criando experiências independentes que fazem sentido para elas e para suas necessidades específicas. E isso exige que pensemos de maneira diferente sobre como e por que as pessoas consomem o que consomem.
O YouTube quebrando expectativas
Assim como os motivos pelos quais as pessoas escolhem assistir a certos tipos de conteúdo estão mudando, as categorias e formatos nos quais esse conteúdo se encaixa também mudam. Às vezes, o melhor do YouTube é quando as pessoas fazem coisas que vão contra nossas expectativas.
No ano passado, por exemplo, descobri um vídeo da Coreia do Sul em que uma galinha cantava a música “Havana”, de Camilla Cabello. Esse vídeo maravilhoso foi criado por Big Marvel, que surgiu no mundo fazendo música com calculadoras. Depois, ele mudou para outros instrumentos esquisitos, como óculos e computadores antigos.
Esses vídeos despertaram alguma coisa em mim justamente por serem tão peculiares. E mesmo se aproveitando de tendências e de músicas populares, o seu trabalho parecia ser algo totalmente único. Em pouco mais de um ano, Big Marvel já ganhou mais de 6 milhões de assinantes.
O YouTube mostra que gêneros esquisitos e surpreendentes podem ter sucesso mesmo que eles jamais pudessem encontrar espaço em outros lugares por serem “nichados”, “arriscados” ou “estranhos” demais em um contexto de mídia de massa. Até pouco tempo atrás, o conteúdo relacionado a videogames parecia uma coisa obscura: mas o maior livestream da história do Brasil foi do Free Fire, com mais de 760 mil viewers. E hoje vemos conteúdo de games sendo produzido não só por qualquer adolescente, mas também por celebridades.
No YouTube, encontramos canais populares sobre bordado, modelos de tênis, truques para jogar frisbee, tutoriais de culinária do século XVIII e guias de sobrevivência primitiva. Esses canais parecem de nicho, mas é justamente por serem nichados que eles conseguem ter um apelo tão amplo.
Fiquei surpreso quando descobri que os vídeos de motoristas de caminhão fazem sucesso no Brasil – e que o canal mais popular desse segmento tem mais de 1,3 milhão de seguidores. E mais: ele é feito por uma criadora mulher.
No YouTube, a criatividade é das pessoas
A criatividade aparece de maneira surpreendente no YouTube porque é sua audiência que decide o que é importante. É isso que faz dele uma plataforma tão imprevisível e tão influente – assim, um clipe de R$ 30 mil se torna o maior hit da história do YouTube no Brasil, chegando a 1 bilhão de views e rompendo fronteiras, virando sucesso em estúdios de dança na Coreia do Sul, por exemplo.
Assim, quando tentamos entender o que as pessoas estão vendo e por quê, precisamos reconhecer que esses tipos novos de criatividade nem sempre se encaixam nos padrões ”clássicos” de entretenimento, porque eles não conseguem reagir às coisas com as quais as pessoas se conectam.
E quem são essas personalidades? Como elas são? Uma nova geração de talentos surgiu e está se consolidando na cultura popular. Esses criadores viraram celebridades por meio de experiências autênticas e íntimas de conteúdo. Hoje, o Brasil tem mais de mil canais com 1 milhão de seguidores.
Um deles é Mohamad Hindi, que viaja pelo mundo falando sobre comida. Ou então Ellora, que faz vídeos sobre a vida cotidiana, comentando temas como relacionamento, família e questões sociais.
Mas o que acho mais interessante é que no topo do ranking do YouTube está uma nova leva de criadores que estão desafiando não apenas o caminho “normal” para o estrelato, mas muitas das hipóteses que formamos sobre quem pode chegar lá.
São pessoas como Ju Romano, cujo canal prova que você pode fazer vídeos sobre beleza e positividade do corpo ao mesmo tempo. Ou então Dani Amaral, que mostra que as necessidades físicas especiais não precisam acabar com a criatividade. Outro exemplo são as Avós da Razão, que deixam claro que dar conselhos sobre relacionamentos virtuais é coisa para gente de qualquer idade.
Por sinal, os criadores da terceira idade não são exclusividade do Brasil. As Pasta Grannies (“Vovós do macarrão” em inglês) são avós italianas que apresentam receitas regionais antes que elas se percam no tempo. E elas também provam que ninguém precisa ser um profissional para ser um grande apresentador.
Para os criadores e criadoras desses canais, não se trata de encontrar um “nicho”, e sim de ser uma pessoa única, que se conecte com os outros de maneiras que vão além de qualquer conceito de gênero ou negócio. É a identidade e a perspectiva que faz as pessoas voltarem a ver esses vídeos.
O ticolé ganhando o mundo
Agora, uma história incrível para terminar.
No último verão, dois meninos de um bairro pobre de Porto Alegre gravaram um vídeo curto, em plena rua, sobre um assunto muito importante para eles. Esse vídeo logo se tornou uma sensação viral, porque o seu tópico também era muito importante para outras pessoas durante o verão. Estou, é claro, falando do ticolé.
Esse clipe meio ridículo foi visto 20 milhões de vezes em duas semanas. Ele deu origem a reações, imitações, tutoriais de dança e uma versão incrível do Dennis DJ.
Você pode achar tudo isso meio ridículo. Talvez até seja, mas é o tipo de coisa que me lembra de tudo que é possível nessa nova era de cultura popular, impulsionada pelas pessoas e pelas coisas que importam para elas.
O YouTube, enquanto comunidade criativa, mudou muito ao longo dos anos. O mais interessante para mim é que essa mídia não se adaptou às expectativas das mídias tradicionais, nem às regras que esperamos de uma mídia de massa. Em vez disso, o YouTube se adaptou às necessidades diversas e únicas do público que o utiliza.
Não importa se você é um DJ popular, um estudante que se tornou um criador ou dois meninos no meio da rua em Porto Alegre. Não importa se você gosta de consumir conteúdo sobre videogames, saúde mental ou algo meio absurdo, como o ticolé.
O YouTube é criado para refletir a diversidade e o caráter único daqueles que interagem com ele. O YouTube não é construído a partir de valor de produção, e sim de paixão. A sua criatividade não é baseada no conteúdo, e sim nas pessoas.